14 agosto, 2008

o asfalto

Lia Fitzgerald e Hemingway e achava que isso fazia com que tivesse um certo ar de inteligência superior. Tomava expresso em cafés e parafraseava Wilde para as menininhas. Bebia rum, fumava filtro amarelo e gostava de quando Chet Baker cantava.

Nunca aprendeu a dirigir e preferia cruzar a cidade a pé. Chutava pedras no caminho.

Voltava para o apartamento que dividia com outros todas as madrugadas. Algo cheirava a pobre naquele lugar, mas nunca descobriu a origem do mau cheiro, preferia abrir as janelas.

Checava os recados na secretária eletrônica:

- Sinto muito.

O que ela sentia tanto?

Não entendia as mulheres. Como esperavam que ele se apaixonasse sendo todas tão carentes, sem brilho e sem a inteligência superior que ele buscava?

Sentava-se na varanda e fumava. Não sentia vontade de tocar piano. Pensava em Hemingway, na sua falta de senso de humor. Ele próprio não tinha um.

Sua mente era obtusa, cheia de corredores estreitos e aposentos sombrios. Passava horas perdido dentro deles colando pôsteres de si mesmo nas paredes que o convencessem de que ele era o que achava ser, tentando achar uma brecha, algo que pudesse causar uma rachadura nas paredes da represa.

Seria inundado. Se afogaria.

Era formado em direito, mas sempre quis ser escritor. Os pais definitivamente fizeram a melhor decisão. Aquela era uma carreira que dava dinheiro.

Esmagado. Pensava em mudar de cidade, mudar de nome, mas no fundo sabia que as coisas não ficariam melhores.

Escrever doía. Ficava confuso quando tentava, fugia de sentir o que sentia quando se sentava com o papel e a caneta na mão. Era como se tivesse que confessar um crime. Preferia tomar um trago e arrumar algo mais agradável. Ver tv.

Nada.

Outro cigarro.

Pensava em processar a empresa. Todos os dias comprava maços com a certeza de que aquilo o mataria, dia após dia, maço após maço, anos, nada. Sequer tossia.

Na escuridão pensou na sacada do apartamento e no asfalto esperando lá em baixo.

Essas coisas devem ser feitas num impulso, mas teve tempo de ligar e deixar um recado na secretária eletrônica:

- Sinto muito.

E sentia.