29 julho, 2008

fracasso com unhas de porcelana

Abria a geladeira várias vezes ao dia só para garantir que não havia nada para comer. Eu ainda tinha ovos. Ovos são mesmo alimentos sagrados, quando apodrecem logo demonstram. Nada de fingir um bom aspecto e nos deixar de cama por dias vomitando as entranhas. Fora os ovos, eu tinha bolachas de água e sal e uma geléia de morango com gosto de vômito. E eu não agüentava mais comer bolachas de água e sal com geléia de vômito. Se eu tivesse que engolir mais uma dessas coisinhas na minha vida, seria bastante frustrante.

Mas sempre pude confiar nos ovos e fazer uma omelete e era o que eu pretendia fazer. Alegrava-me saber que com a geladeira vazia as cervejas gelariam mais rápido.

A essa altura do campeonato os bêbados da minha vida tinham razão: a bebida pode fazer por você coisas que nenhuma outra coisa faz. Um refrigerante, por exemplo, abriria ainda mais o meu apetite e me daria vontade de comer uma macarronada. E que os deuses me livrassem de uma vontade dessas.

Bem, eu continuava trabalhando no escritório cinza que continuava pagando o quarto amarelo. Pagava também minhas bolachas de água e sal com geléia de vomito e a bebida e uns ovos. Eu estava atravessando uma incrível maré de azar. Na maioria dos dias eu me sentia um fracasso, e nos que restavam também. Era duro admitir, mas depois das cervejas geladas ficaria mais fácil.

Meu azar era tão grande que a campainha tocou muito antes delas ficarem frescas.

- ânia...
- meu amor - berrou ela afetada - eu estava passando por aqui e resolvi te visitar.

Os dias de se avisar com antencedência e dar ao próximo bastante tempo para inventar uma desculpa haviam acabado.

- Nossa, você está tão magra e abatida.
- Você parece bem.
- Não pareço? Estou ótima, acabo de chegar de Hamburgo e trouxe milhares de fotos para você ver...

Aquela seria uma longa tarde.

Eu simplesmente não dava sorte. Quando a campainha tocava eu sabia que boa coisa não era, provavelmente algum idiota esperando que você estivesse bêbada o suficiente para ir para cama com ele ou uma idiota que adorava ouvir o som da própria voz e falar sobre toda a sua vida como se você estivesse realmente interessada. Nós nos sentávamos nas grandes almofadas e então elas começavam a falar pelos cotovelos.

Por mais que eu odiasse silêncios desagradáveis, sempre esperava o máximo daquela situação até que a outra parte se incumbisse de colocar em prática uma das duas alternativas: sentir-se desconfortável e partir rapidamente ou dar início a um monólogo comprido. Geralmente as idiotas preferiam falar copiosamente durante horas.

Ânia era esse tipo de mulher. Falava desesperadamente e sem pausa, atropelando as próprias frases. E gargalhava e arrastava sua almofada até a minha e me mostrava e explicava foto por foto. Do seu casamento, da sua lua de mel, da formatura do mestrado, do seu marido dentro de um carrão importado usando verdadeiros ray bans.

Eu desejava que o céu se abrisse e me mostrasse o sentido daquilo tudo. Lá estava eu, muito abaixo do peso, da mesmíssima cor que o escritório, unhas roídas e cabelos revoltos. Nenhum emprego promissor, nenhum marido engomadinho, nenhuma viagem à Europa, nenhum anel de diamantes.

As cervejas iam descer bem até quentes, e Ânia via a oportunidade perfeita para começar um novo e ainda mais interessante assunto: A minha alimentação.

Que essa idéia de ser vegetariana era patética. Que eu deveria beber menos, que eu deveria me exercitar mais, porque mesmo magra eu poderia ter celulite e que nenhum homem se casaria comigo se eu tivesse celulite.

- Suzana me contou que o namorado sugeriu que ela começasse a malhar assim que tivesse o bebê, mas eu já havia dito isso para ela faz um tempão.

Eu já não estava mais prestando atenção, e ela estalava os dedos ruidosamente e perguntava:

- Você não está de porre, está amiga? Porque se você está...

E reiniciava um falatório enorme sobre ser dona da sua vida e dona do seu nariz e uma mulher profissional e amada e perfeita e do século vinte um. Que eu era a menos bem sucedida da escola, e que precisava mesmo fazer qualquer coisa para me ajudar, e que conhecia milhares de ótimos partidos para mim. Que eu só precisava parar de beber. E de fumar. E que precisava maneirar com os palavrões também. Aparentemente os homens não gostavam disso. Mas que ela daria um jeito em tudo porque era a mulher maravilha com dois peitos siliconados, cabelo tingido de loiro e unhas de porcelana.

Por que eu me relacionava com mulheres como aquela? E o mais confuso: Por que elas se relacionavam comigo?

Por fim os deuses fizeram seu celular tocar justo momento em que minhas mãos alcançaram na cozinha a minha faca cega que me servia tão bem para espalhar a geléia nas bolachas.

E passou a murmurar tapando o fone com a mão:

- Sim, sim, querido, estou indo pra casa. Sim, tem jantar no forno. Não meu amor, não fale assim. Sim, sim querido, estou indo. Agora mesmo.

Mal se despediu de mim e correu para fora de casa. Larguei a faca de geléia e abri a geladeira para ver se alguma comida havia aparecido magicamente. Já não tinha mais fome porque a bebida faz por mim algo que nenhuma outra coisa faz.

A noite vinha caindo e eu estava cansada. Deitei na varanda para aproveitar a brisa, e poderia passar o resto da noite sem me mover se quisesse. De alguma forma eu me sentia um fracasso menor.